domingo, 30 de novembro de 2008

tempo para o poema

não há tempo para o poema
quando tem-se que depilar as pernas.
Quando a casa é suja, e a barriga ronca
e a ferrugem impregna na janela de alumínio.

Entre o escovar de dentes e bater de portas,
entre o colesterol alto e o salto no asfalto
encerra-se o poeta.
A vida aflita não comporta
o que importa para a escrita.

O sorriso de leite
no primeiro dente do filho que chora;
O amor, que já foi embora;
A eterna sensação de que demora:
o que se vive, não se escreve.
No registro se perde
o quanto eu existo.

desisto!

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

aceita

Não pode ser porque não deixam
Não pode ver porque não guenta

assenta.
assenta.

Não vai passar por qualquer porta
porque está como quase morta

entorta.
entorta.

Não pode ganhar porque está feia
Não pode roubar porque é perfeita

estreita
estreita.

Não pode trocar, não tem permuta
Não pode cantar porque o vizinho escuta
Não pode amar que o mundo espreita
Não pode agir.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

intimidade

Constelação
de buracos
na fronha.

Toalhas manchadas,
meias perdidas,
insônia.

Coisas que não tem como durar.
casa que não tem
onde guardar coisa.

Mania de
cheirar madeira.
Algodão-doce.
Banho até
ficar vermelha.

Medo de ficar velha.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

princípios

querido, essa noite
tive um sonho

horrível!

Você vinha de mansinho
feito um carinho na nuca
Céu azul, cabelo ao vento,
cavalo branco

E, como num filme

terrível!

me beijava a testa
e servia o café.

sábado, 15 de novembro de 2008

sabores

escolher sorvete,
exercício de humor:
café para os dias maduros
menta para os solitários
pistache para os adúlteros
banana caramelada,
quando sentir criatividade.

chocolate é coisa de todos os dias:
comer devagar para provocar os irmãos
respingo manchando o vestido vermelho,
mão dada, abraço, gelado na testa.
lembrança da maresia
no escorrega da praça.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

work in progress

De volta ao conjugado da praia do flamengo, as cortinas permaneciam fechadas. Talvez porque erguê-las seria constatar a previsão maçante da paisagem. “Que tédio”, pensou, “sempre a mesma”. O céu que não mudava, os prédios que não mudavam cobrindo o morro que, por trás de tudo, não era possível saber. Apenas os outdoors de três em três meses para reinaugurar na paisagem cada vez um novo rosto, todos indistinguíveis entre si.

Enfiou as mãos no bolso do casaco, como se procurasse algo, sem saber bem o quê, talvez o amor perdido. Não o amor por ela mas aquele amor adolescente que alimenta nossa necessidade de não morrer. Ergueu-as ainda cerradas, demorando no gesto. Do sobretudo saíram: um tíquete do metrô da viagem para Paris, em 1994, algumas linhas quebradas do forro, uma moeda de cinquenta centavos e outra de dez. “Não era bem o que eu esperava”. Riu, mas no imediato a seguir procurava de onde vinha essa capacidade. A falta de resposta tomou-o num soluço e o homenzinho desabou num choro nervoso.
Pensou em Beatriz, e no momento exato em que tocou os cabelos pretos, a partir de alguma piada como desculpa, que surgira na criatividade bêbada. Não lembrava mais da piada, mas lembrava da textura dos cabelos e poderia descrever a inclinação exata com que os olhos amendoados viraram em sua direção. Trinta e um graus. Queria ligar mas não tinha o telefone. E se tivesse, ligaria?

Da rua vinham barulhos de carros, barulhos de gente, de jogo de futebol. Vinham pedaços de confusão na voz inadequada dos travestis. Mas haviam outros barulhos. barulhos de coisa, barulhos de apartamentos que subiam pelo vão do prédio e denunciavam a intimidade intrusa dos vizinhos. “Se eu tivesse talento talvez tentasse escrever algo sobre isso”. Virou o rosto num grunhido de indignação e ligou a tevê para abafar a realidade. A noite foi uma diversão só, examinando o temporal escorrer na janela e a cerveja goela abaixo, delirando tudo em desenhos que três horas depois estariam perdidos em algum depósito da comlurb.

domingo, 9 de novembro de 2008

tombo

Lembro gostoso
de quando ainda era constante
aprender

Amarrar os cadarços
soletrar os nomes
levantar sem chorar

A mãe soprava o mertiolate:
não vai arder

Na gaveta dos remédios,
hoje eu alcanso o armário
mas não acho band-aid
que ajude.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

é

o dia que não passa
a fila que não anda
o amor que não chega
o telefone que não toca
o dinheiro que não supre
a vontade que não acaba
o cabelo que não cresce
o corpo que não funciona
a dor que não justifica
a vida que não dura.